Por
Roberto Mallet
Palestra no Festival Universitário de Teatro de Blumenau no dia 7 de julho de 2000. Transcrição de Fernando Weffort.
O que é preciso ver para ser ator, para ser um artista? Essa é uma discussão que está ligada à arte contemporânea de um modo geral e não só ao trabalho do ator especificamente. Então, gostaria de começar lembrando a origem da palavra Teatro, que muitos de vocês aqui devem conhecer. Teatro quer dizer lugar onde se vai para ver - Theátron. Esse ver do teatro, pelo menos da palavra grega theaomai, provém da raiz thea, um verbo que se traduziria mais corretamente para o português por contemplação. A contemplação é uma visão intuitiva das coisas, uma visão intelectual, da inteligência. O teatro não seria, portanto, um lugar onde eu vou para encher os olhos - como muitas vezes acaba acontecendo no teatro e na arte contemporânea, uma arte que se dirige mais ao olhar sensível. A arte, pelo menos se a gente for pegar a história da arte, sempre foi pensada, exceto em algumas correntes nos últimos dois séculos, como se dirigindo fundamentalmente à nossa inteligência através dos sentidos.
Eu venho dizendo há alguns anos que a formação do artista é também a construção de um olhar, de uma maneira de olhar, um olhar que pretenda compreender. E a nossa questão aqui é: eu como ator preciso desenvolver que tipo de olhar? Me parece que isto é algo que não fica claro para nós atores. Conta-se de um pintor que estava pintando um quadro e procurava de uma determinada cor que estava próxima do lilás, e ele não encontrava esta cor. Era um pintor que costumava ir muito aos museus, observava muito as obras de arte como inspiração e treinamento do olhar. E esse pintor, ainda atrás desse lilás, chama um coche para ir a um museu exatamente para ver se ele encontrava a porra do lilás que procurava. Quando chega o coche - era um dia iluminado, com muito sol -, era um coche todo amarelo, e quando ele viu o coche (vocês devem saber que existem cores complementares que irradiam-se em torno dos objetos - se você tem um objeto muito amarelo em torno dele você tem uma aura roxa, lilás, que é complementar do amarelo.), quando ele viu o coche ele disse: “não preciso mais ir ao museu”; voltou e preencheu a zona em torno desse ponto onde ele queria a cor com amarelo, e criou essa cor complementar. Ou seja, um pintor é alguém que tem um olhar afiado para cores, manchas, volumes, linhas... É alguém que aprende a olhar. Quem não consegue ver bem, não consegue desenhar bem, não consegue pintar bem, é óbvio. Claro que ele já tem esse talento natural, mas é algo que precisa ser desenvolvido. Um músico é alguém que ouve bem, alguém que consegue ouvir coisas que nós não ouvimos. Não é? A gente conhece músicos e fica às vezes assustado: “como é que esse cara está ouvindo tanta coisa? Eu não estou ouvindo nada disso.” Mas as coisas estão lá, ele é capaz de ouvir, ou seja, ele tem um ouvido treinado.
E nós atores temos que ter um olho treinado para o quê? Qual é a nossa matéria de trabalho? O que é que corresponde às linhas, volumes, cores no trabalho do ator? E isso liga-se com a questão do teatro grego: eu vou ao teatro para ver o quê? Para compreender o quê?
Parece-me que na formação do ator se descuida muito esse aspecto - a gente precisa ver teatro para aprender a fazer teatro. Nós estamos começando o Festival aqui, nós vamos passar ainda por vários debates. E o que eu tenho visto na maioria dos debates em outros festivais por aí, neste aqui também, em outras edições, é que o olhar das pessoas sobre o espetáculo é muito vago, é muito pouco definido. As pessoas não sabem para onde devem olhar. Isto resulta numa avaliação vaga, numa avaliação indefinida, baseada muito mais no gosto do que em dados objetivos; “gostei”, “não gostei”, “não me agrada”, “você poderia ser mais incisivo”, quer dizer, coisas que não se baseiam na obra propriamente dita mas em reações subjetivas.
Eu venho nos últimos anos discutindo muito um tema que me parece um pouco fora do nosso imaginário, do nosso campo de discussão, que é a nossa dificuldade em ser objetivos, em ver. Claro, nós estamos vivendo um período em que, há pelo menos 300 anos, a nossa civilização entrou numa relativização de todos as coisas. Começa com Descartes, na verdade começa com Guilherme de Ockam em 1350, passa por Descartes e chega em seu ápice com Kant, que chega à conclusão de que eu só posso saber o que eu percebo do mundo, mas não posso saber nada sobre o mundo propriamente dito; que eu não posso afirmar nada sobre a realidade externa, sempre ela é subjetiva. Nós vivemos ainda sobre a égide desse pensamento. A Academia, a Universidade inteira - não esta ou aquela, mas toda Universidade - vive sob a égide desse pensamento. Uma relativização de todas as coisas. A filosofia contemporânea inteira, a sociologia, a lingüística, etc., etc. De maneira que muitas vezes a gente não consegue ter um olhar objetivo sobre as coisas, e vivemos em nossa imaginação. O nosso imaginário se torna o filtro através do qual a gente vê as coisas.
Eu dizia que nos debates, muitas vezes (quando a gente está de fora é mais fácil ver do que quando a gente está de dentro), os diretores e atores quando falam sobre o seu espetáculo, eles falam sobre um espetáculo que eles imaginaram e não sobre o espetáculo que está lá. Não sei se vocês já perceberam isso, é muito comum. Eu imaginei determinadas coisas, eu tenho determinadas idéias sobre o espetáculo e eu não consigo confrontar essas idéias, essas imagens, com o objeto que é o próprio espetáculo. Aí vem todo aquele discurso: “tudo é relativo”; “isso é subjetivo”... Então eu gostaria que vocês refletissem - a nossa oficina busca um pouco isto - sobre a distância que há muitas vezes entre o que eu penso sobre as coisas ou o que eu imagino sobre as coisas e a maneira como elas de fato se apresentam a mim.
Mas voltando ao trabalho do ator, que matéria é essa que meu olho deve ser treinado para ver? Obviamente são as ações. A matéria do teatro, a matéria do ator são as ações. Fundamentalmente o ator é aquele que age - por definição. A melhor maneira que eu tenho encontrado nos últimos anos de explicar o que é uma ação, é baseada na teoria das quatro causas do Aristóteles.
Para Aristóteles, todo objeto, todo ente, tudo aquilo que existe no universo tem quatro causas. A causa eficiente, a causa formal, a causa material e a causa
final. Se a gente pensar isso num objeto qualquer, um objeto artificial - uma cadeira por exemplo - fica bastante claro para nós. Para que uma cadeira exista o que é preciso? Bom, primeiro precisa alguém que a faça; uma cadeira não aparece do nada. É o que Aristóteles chamava de causa eficiente. Segundo, ela precisa ter uma forma. O que é forma? É a estrutura interna dela, é a idéia dela (idéia no sentido Aristotélico - eidos). Terceiro, ela precisa de uma matéria da qual ela seja feita; eu não posso fazer uma cadeira de nada. Então eu vou ter sempre uma matéria, que é a causa material. E quarto, ela tem uma finalidade; aquilo é construído por alguma razão.
Aristóteles aplica isso ao universo inteiro, tanto ao universo artificial, quanto ao universo natural. Nós não vamos entrar aqui na questão do universo natural porque tem muita discussão nisso e nós vamos perder o rumo da nossa conversa. Então nós vamos nos limitar aos objetos artificiais. Nos objetos artificiais isso aí é de uma obviedade indiscutível. Numa obra de arte, por exemplo (numa cadeira), você sempre vai ter esses quatro elementos. No nosso comportamento isso aí é indiscutível também; a gente não faz nada, absolutamente nada, sem razão alguma. A gente pode até pensar que está fazendo sem razão, aí entra toda a teoria freudiana, da psicanálise e de todas psicologias que buscam encontrar as motivações ocultas em atos aparentemente sem sentido... e isso está por trás dessa teoria, ela parte desse princípio: não existe nada que aconteça por acaso. Então se você sonhou com alguma coisa deve ter alguma razão para isso, e ela vai atrás dessas razões.
Agora, se a gente se voltar para o ator - Stanislavski falava disso exaustivamente, não tenho nada de novo para dizer para vocês, talvez eu só esteja tentando pegar isso numa linguagem, a partir de alguns elementos mais acessíveis a nós - toda ação tem o que ele chamava de objetivo, e que o Aristóteles chamava de causa final, e é ela que move a ação. Dizia o Aristóteles que a causa final é que move, mas ela não move da mesma maneira que a causa eficiente - que é aquele que vai lá e faz, se movimenta e age para fazer a cadeira - ela move, de uma certa forma, como atração. Eu quero chegar naquele objetivo e portanto eu faço alguma coisa. É esse o sentido de movimento para a causa final, o objetivo.
Agora, no trabalho do ator a gente percebe que existe duas ações pelo menos, talvez três. Vamos pegar um espetáculo realista em que é mais fácil da gente pensar isso, mas isso se aplica, guardadas as transposições necessárias, para o teatro não-realista, para a dança, enfim, para qualquer uma das artes que chamamos hoje de performáticas. No teatro realista, você tem a ação da personagem - quando Stanislavski falava em objetivo ele estava se referindo a essa ação, ao objetivo da personagem. Digamos, quando Hamlet convence os atores a fazer aquele espetáculo com o texto que ele escreveu, qual era a finalidade dele? A finalidade dele era testar uma teoria... testar o que o fantasma falou para ele; ver se realmente o rei matou o pai dele ou não. Ele tem uma finalidade objetiva ali. Isso não pode ser esquecido pelo ator.
Bom, mas não é só essa ação que a gente tem no ator. Aliás essa ação não está no ator, está no imaginário do ator, às vezes muito mais no imaginário do público do que no imaginário do ator. Há uma confusão freqüente sobre isso entre os nossos atores: achar que há uma identificação de objetivo, ou mesmo de ser,
entre o ator e a personagem. Isso é uma grande bobagem; você não pode ser a personagem, por definição - você é você. Segundo, você não pode sentir as coisas que a personagem sente. Muitos atores se perdem nisso, tentando sentir o que a personagem sente, achando que memória afetiva em Stanislavski era isso - não era! É bem verdade que nos livros que a gente tem traduzidos do Stanislavsky, a linguagem é um pouco confusa e pode nos levar a pensar isto. Mas em outros momentos isso é objetivamente dito por ele: o ator não deve se preocupar em sentir, o ator tem que se preocupar em agir. O sentimento é decorrência da ação. E mais, o ator não sente as coisas que a personagem sente. Imagine se o ator que faz Otelo sentisse o que Otelo sente. Seria a produção mais cara do mundo; precisaria de uma atriz por dia, mais o enterro, etc., etc., ia sair muito cara essa produção. O que o ator sente é outra coisa - e não importa muito o que ele sente, importa o que ele faz.
Essa segunda ação do ator é uma ação que ele realiza sobre o seu próprio organismo psico-físico e sobre o espaço que o rodeia, sobre os outros atores, sobre o público... enfim, é a ação do criador propriamente dita. Aqui a gente colocaria que o ator é causa eficiente; a matéria é o seu próprio organismo psico-físico; a forma, a ação da personagem; e a finalidade é a própria obra.
Está dando para acompanhar? Porque aqui é que está o buraco, me parece. A finalidade é a própria obra. É o que Stanislavski chamava de superobjetivo. E é a própria obra enquanto sentido também - a obra tem um sentido - e não a própria obra em geral - “fazer teatro”. Me parece que este é um dos nossos equívocos fundamentais. Claro que na oficina a gente vai ter a oportunidade de fazer pequenos experimentos práticos que vão esclarecer isso um pouco melhor do que essa breve conversa que a gente está tendo. Mas eu vou tentar falar um pouco sobre isto, porque me parece que se a gente conseguir ver isso com mais clareza, nosso trabalho ganharia muito.
Uma vez que a ação da personagem é a causa formal do trabalho do ator, ela tem que estar muito presente nesse trabalho. O Stanislavski dizia uma coisa genial em relação a isto: o ator não pode pensar nunca em generalidades. E é a coisa que a gente mais faz.
Todos vocês devem ter tido essa experiência: você entra em cena, começa a desenvolver alguma coisa, o diretor pára e diz: mas você está fazendo isso por quê? Você está querendo o quê? “- Não, é que... é...” - a gente não sabe, é sempre muito geral. “- Não, é que... ela está querendo ser feliz.” Mas o que é isso, “querer ser feliz”? “Ela quer se vingar...” Mas o que é isso, “querer se vingar”? Isso é muito geral. É o que eu dizia antes, a gente vive num mundo muito abstrato. Porque o mundo da imaginação é um mundo abstrato, é um mundo esquemático. Quando você lembra de alguém, por exemplo - mesmo pessoas que você conhece intimamente, mesmo sua mãe - a imagem que você tem de sua mãe é um esquema, onde está faltando um monte de coisa, é abstrata. Como é que eu faço para concretizar isso, como ator? Como é que eu transformo isso em ação? Esta é a pergunta.
A imaginação do ator tem que ser uma imaginação que se encarna. Ou seja, é uma imaginação que não é puramente mental. A gente muitas vezes acha que a imaginação é uma espécie de filme que está lá na nossa cabeça. A gente reduz a imaginação à memória visual. Ok, nós temos mesmo um preponderância
do olhar na nossa percepção, mas quando eu transformo isso em ação, isso tem que se encarnar em meu corpo, ou seja, você tem que trabalhar com os seus cinco sentidos.
Jacques Copeau tem uma definição muito legal sobre o trabalho do ator, onde ele diz que o ator não mente, não é uma mentira o trabalho do ator, mas é uma espécie de ação (eu prefiro a palavra ação, ele fala em sentir o imaginário), uma ação diziam assim: não existe o teatro, existem teatros! Como se o plural resolvesse o problema. Mas quando você fala teatro você está falando do quê? E se é plural, é plural do quê? Isso é uma negação, de novo, tipicamente do mundo contemporâneo, uma negação das essências. Uma idéia de que as essências não existem. De uma certa forma, de fato elas não existem, porque elas só existem na coisa, não existe uma essência separada, uma essência pura, isso não existe mesmo. Mas a definição de teatro (talvez a mais apropriada, ou a que eu mais uso) é: alguém que age num plano ficcional diante de alguém que vê. Se você tiver isso você já tem teatro.
Nesse caso, por exemplo, que eu citava, um exercício onde a pessoa não sabe exatamente o que ela está fazendo, ela não tem claro um objetivo interno à cena. O que é que está acontecendo de fato? Eu concluí ao longo desses meus anos de trabalho que é a causa final que está errada. Não é que ela não tenha um objetivo, é que ela está com um objetivo equivocado. O objetivo dela é, por exemplo, resolver a cena. Ela entra para isso. Dá para entender onde é que está esse buraco?! Isso é fundamental! Digamos que você tem essa cena de que a gente falava, do Hamlet. Ele quer convencer os atores a fazerem um determinado espetáculo porque ele está interessado em revelar ou, pelo menos, em testar o rei. Esse objetivo é muitas vezes esquecido pelo ator e ele entra na cena para fazer teatro - é isso que está na cabeça dele, a gente vê isso nos espetáculos com muita freqüência, isso aí é o ponto a partir do qual o espetáculo começa a se degradar, começa a esvaziar. As pessoas já não repetem, já não refazem os espetáculos com os objetivos reais do espetáculo, mas com o objetivo de fazer de novo, de repetir; elas mudam o objetivo insensivelmente, e não percebem que estão mudando o objetivo. Agora mesmo com o espetáculo que eu estava dirigindo lá em São Paulo aconteceu isso no meio da temporada. Eles fizeram um espetáculo péssimo. E você vai ver por que é que isso acontece - é porque não há mais o impulso inicial que movia o ator; ele esqueceu daquele impulso e começa a gerar uma outra preocupação que é repetir e fazer o espetáculo bem feito. Isso quando havia uma ação originalmente.
Muitos atores têm como objetivo fundamental ser admirados. A pessoa está em cena não é para fazer teatro, não é para te dizer alguma coisa, mas é para que você diga alguma coisa para ela. Isso é maravilhoso. Nós precisamos identificar isso, porque isso está na cena.
Notem: a causa final está na cena. É ela que move o agente. Dito de outra maneira: a causa final determina a obra. E se ela determina a obra, eu posso identificá-la na obra. Há pouco tempo eu assisti um espetáculo, em uma mostra, que era uma série de histórias... Era um espetáculo composto de narrativas... E esse espetáculo era costurado por pequenas canções. Eram dois atores, um que tocava violão e cantava e o outro que fazia mais a narrativa e que também cantava. E acontecia uma coisa muito ruim no espetáculo: a narrativa era
maravilhosa, as músicas de ligação eram muito fracas. Quando entravam essas músicas o espetáculo caia lá em baixo. Aí, quando retomava a narrativa, o espetáculo vinha subindo e voltava para o ponto. Vendo o espetáculo imediatamente compreendi: esse ator, o violonista, é o compositor das músicas. Só pode ser isso. É a única razão para que essas músicas estejam costurando o espetáculo. E tiro e queda! Ele era o compositor das músicas. Dá para perceber? Quer dizer, o cara simplesmente ficou cego, ele deixou de ver a obra que estava construindo em função do desejo pessoal de mostrar suas músicas. E ele simplesmente fica cego mesmo. Porque se ele soubesse disso, tudo bem, estão me entendendo? O que nós estamos discutindo aqui é isso: o problema é que você cega, deixa de ver. O objetivo é tão forte que cobre, te cega. Porque se o cara lá entrasse em cena sabendo que ele quer ser admirado, ok, porque ele conseguiria transpor isso e poderia até vir a conseguir o seu intento, mas o problema é que ele não sabe disso e a direção não percebe isso também. Se o objetivo dele é “fazer teatro”, é “mudar o mundo”, isso é uma coisa muito vaga, muito ampla. Os objetivos precisam ser concretos.
E o que é essa ação dramática, então? Essa é a minha discussão há anos, quem me conhece sabe que esse é o tema corrente, obsessivo da minha discussão. Porque eu acho que a maioria dos nossos atores não compreende mais o que é a ação dramática.
Por exemplo, hoje em dia temos muitos espetáculos onde o objetivo é mostrar as habilidades adquiridas pelo elenco. Algumas pessoas que vêem na linha do teatro antropológico caem nisso. Não estou nem dizendo que o teatro antropológico cai nisso. Mas o cara adquiriu uma habilidade, passou meses, anos trabalhando para adquirir a porra daquela habilidade e ele não se contenta que aquilo seja apenas um elemento estrutural no seu trabalho, ele precisa mostrar para as pessoas a habilidade que ele tem. E aí você perdeu a dimensão da ação, e portanto a dimensão do sentido, e foi para a demonstração de habilidade, que é um fato circense e não teatral. Eu vou ao circo para ver habilidades desenvolvidas. Uma vez eu vi no programa do Jô Soares um treinador de orangotangos. Depois de demonstrar várias habilidades do orangotango, havia um número em que o orangotango comia, numa mesinha. O Jô perguntou-lhe: “Quanto tempo para fazer o orangotango comer no prato?” E o treinador respondeu: “Um ano só para fazê-lo pegar na colher.” E e é isto, você vai ao circo e aplaude porque o cara perdeu um ano da vida dele para fazer um orangotango pegar numa colher. É esse o sentido do circo. O Barba tem uma definição legal sobre isso - eu tenho as minhas diferenças com o Barba (e ele tá cagando pra isso, né?), mas o trabalho teórico dele tem um valor imenso... Eu costumo dizer que o Barba faz teatro comparado e não antropologia teatral - ele comparou várias formas de teatro e tirou os princípios que subjazem a todas elas, e é um trabalho brilhante, nenhum de vocês pode desconhecer a obra desse cara, especialmente o livro A Canoa de Papel, que para mim é o livro mais generoso do Eugênio Barba, e também o de maior utilidade para os atores. Mas, voltando, ele diz uma coisa que é muito legal nesse sentido. Ele diz: eu vou ao circo para ver algo que é incrível. Minha relação com o circo é essa, eu vejo o cara fazendo e percebo que eu não conseguiria fazer aquilo. Ele está demonstrando uma habilidade que eu não tenho. E eu vou ao teatro para ver algo que é crível. É o contrário. No teatro eu acredito
(ficcionalmente, é claro) no que está acontecendo. Então, toda demonstração de habilidade no teatro me distancia, no sentido de eu observar aquilo como circo, ou seja, como algo que não tem sentido senão a demonstração da habilidade.
Portanto toda ação, se tem uma causa final, tem um sentido. Teve um tempo que eu costumava dizer que num espetáculo ou num determinado momento não tem ação. Mas é preciso ir mais a fundo nisso. Na verdade é impossível que não tenham ações lá. De acordo com Aristóteles, tudo está agindo o tempo todo. O que ocorre é que a ação não é dramática, ou seja, a ação não é teatral. O objetivo do que o cara está fazendo não corresponde, não se integra no contexto do teatro. Por exemplo, uma ação cujo objetivo seja mostrar as habilidades do sujeito saiu do âmbito teatral. O cara que está te mostrando os belos pensamentos que ele teve, as coisas muito interessantes que ele tem a dizer, saiu do âmbito teatral.
Voltando à questão do olhar do ator - do olho do ator: para onde o nosso olhar tem que se dirigir no dia a dia? O que é que nós temos que observar? As ações e, portanto, os sentidos das coisas. Não de um ponto de vista crítico - não tenho que observar os homens como se eu fosse um técnico de laboratório, um crítico... aliás, você vai se tornar um chato se você for por esse caminho, que está sempre analisando, detectando o que é as pessoas estão querendo. Mas com amor. Ou seja, eu tenho que me colocar no lugar das pessoas e tentar perceber o que elas querem, por que é isso que está determinando a ação delas. Não é isso? Eu sei quem alguém é não pelo seu caráter, mas pelas suas ações. É o que o velho Aristóteles dizia. no teatro o caráter não é o mais importante, o caráter da personagem, mas a trama dos fatos, as ações. Eu sei quem alguém é pelas coisas que ele faz. Não adianta a pessoa me dizer: olha, eu sou muito generoso... A gente não acredita. A gente espera até ver essa pessoa numa situação tal que nos revele se realmente ela é generosa ou não. O que a gente fala sobre nós mesmos (e sobre os outros) tem pouca importância se comparado ao que a gente faz.
Bom, eu queria concluir a minha fala dizendo que nos últimos anos eu comecei a colocar como critério de avalição de um espetáculo - como jurado já tive meus problemas por causa disto - se o espetáculo é generoso. Porque uma obra de arte é feita para o público e um espetáculo que é feito para ser admirado, louvado, é um espetáculo que está fechado em si mesmo. Eu gosto de dizer que o ator é um presente que se dá. Então esse ato de generosidade, de doação, ele está por trás dessa ação do ator. Se você conseguisse ter isso mais claro você já eliminaria metade das ações equivocadas que você pode realizar em cena. Metade. A outra metade você tem que alcançar por outro caminho.
O Jacques Copeau tem uma frase definitiva sobre essa questão: “para o ator doar-se é tudo; mas para doar-se é preciso antes possuir-se”. Então esse olhar que pretende conhecer o outro, deve também ser um olhar objetivo e - aí sim muito cruel - em relação a nós mesmos. A gente também tem que observar nas nossas ações - o que de fato nos move. Porque nós somos muitas vezes grandes mentirosos em relação a nós mesmos. A gente doura a pílula. A gente está querendo uma coisa, mas pra não confessá-lo dizemos que estamos querendo outra. E isto para nós mesmos! Nós conseguimos enganar a nós mesmos, e isso é um verdadeiro prodígio.
Esse questionamento das ações no mundo, inclusive das minhas, ou talvez principalmente das minhas, é que pode me dar um conhecimento mais profundo da matéria (ou da forma, depende do ponto de vista) do ator, que é a ação.
Roberto Mallet é diretor, ator e professor. Em 1992 fundou o Grupo Tempo onde dirigiu os espetáculos Judite (1993), Abismo de Rosas (1994), Teresinha (1998), Canto de Outono (1999) e Drakul - paixão e morte (2002). Em 2001 voltou a trabalhar como ator, no monólogo Lições de Abismo, direção de Mario Santana. Cursou Artes Cênicas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde conheceu Maria Helena Lopes (Grupo Tear), com quem estudou de 1980 a 1986, tendo trabalhado como escriba no espetáculo Os Reis Vagabundos (1982) e como ator em Crônica da Cidade Pequena (1984). Desde 1987 vem se dedicando também ao ensino, particularmente nas áreas de interpretação e teoria teatral. Foi professor na Universidade Regional de Blumenau (SC), de 1989 a 1992, e no Curso Livre de Formação de Atores do TUCA, de 1992 a 1994. Ministra freqüentemente workshops e oficinas. Atualmente é professor de interpretação no Departamento de Artes Cênicas da Universidade de Campinas – UNICAMP.