(Renata Fronzi) |
Houve uma época dourada na história da dramaturgia nacional em que a grande vedete era o Teatro de Revista e brilhavam astros e estrelas como Grande Otelo, Oscarito, Dercy Gonçalves, Bibi Ferreira, Zezé Macedo, Walter D’Ávila. Nomes que imprimiram sua marca no teatro e freqüentemente são citados quando o assunto é a produção cultural brasileira. Apesar de muito se ouvir falar nessas personalidades, os mais jovens praticamente desconhecem o que realmente representou esse momento dos palcos brasileiros - cujo apogeu aconteceu nos anos 40 - e seu legado. Para Neyde Veneziano, professora de teatro brasileiro, no curso de Artes Cênicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que pesquisa o tema e já lançou três livros sobre o assunto (O Teatro de Revista no Brasil: Dramaturgia e Convenções e Não Adianta Chorar: Teatro de Revista no Brasil. Oba!, ambos pela Editora Unicamp, e A Cena de Dario Fo: o Exercício da Imaginação, da editora Códex), trata-se de puro preconceito. “Os números atestam ter sido esta a forma teatral mais expressiva no Brasil; devemos questionar o desprezo absurdo de que tem sido vítima”, diz a pesquisadora. Segundo ela, a raiz desse julgamento errôneo está justamente na opção por fazer uma representação popular do dia-a-dia das pessoas. “Sofre preconceito porque pertence à categoria do teatro popular. Ou seja, o mais importante era a comunicação com o público. Era um teatro que dependia de bilheteria, muito comprometido com seu tempo e, portanto, um teatro comercial.” Além disso, aponta os intelectuais e a crítica de então como co-responsáveis, pois tinham como referência os grandes textos da literatura dramática. “Eles queriam que, no Brasil, houvesse um teatro semelhante ao de Ibsen [Henrik Ibsen, dramaturgo norueguês, 1828-1906] ou ao de Strindberg [August Strindberg, dramaturgo sueco, 1849-1912], por exemplo. Mas nós não tínhamos público para isso. Aliás, nem a Europa tinha público para textos pesados como os desses autores. Era só a crítica que gostava mesmo. O público, em geral, buscava os melodramas e o teatro musicado porque esses gêneros espelhavam a realidade e todos podiam se reconhecer na cena sem complicar muito”, explica Neyde. “Outro dado importante a ser considerado em relação ao preconceito é que esse teatro popular tem uma dramaturgia muito elástica, que abre espaço para as improvisações. Não há um texto rígido que possa atravessar os séculos. São peças que se referem ao momento a que pertencem e são efêmeras. São feitas diretamente para a cena e para o momento a que se ligam.” Para ela, até a década de 80, pouco valor se deu a esse gênero nas universidades. “A resistência do pensamento acadêmico e da crítica é tão explícita que, à época do lançamento de meu primeiro livro, em 1990, o Jornal do Brasil ironizou e publicou meia página com o título ‘O teatro de revista - quem diria? - acabou na universidade’...”
O que é, o que é?
O Teatro de Revista - ou simplesmente revista, como se costumava chamar - foi um gênero teatral derivado dos vaudevilles parisienses, que eram comédias teatrais, acompanhadas de arietas e pequenos coros. Os personagens geralmente se envolviam em situações equivocadas, que iam evoluindo em seu traço cômico conforme a peça se desenrolava. O autor pouco se aprofundava no aspecto psicológico dos personagens. No Brasil, esse tipo de dramaturgia chegou na segunda metade do século 19, tornando-se uma das mais relevantes manifestações culturais da época. No início, caracterizava-se por passar em revista o ano anterior, numa espécie de retrospectiva dos fatos políticos e sociais mais marcantes do período. Tratava-os de forma satírica e utilizava muita música e dança durante as cenas, exatamente como as companhias portuguesas faziam. No final daquele século, despontava um dos grandes dramaturgos brasileiros, Arthur Azevedo. O gênero manteve-se em alta até a consolidação do cinema e a chegada da televisão nos anos 50.
(Virginia Lane) |
A partir da Primeira Guerra Mundial o Brasil ficou isolado do resto do mundo, grandes teatros foram fechados e a revista passou a ter um formato tipicamente brasileiro, em que sotaques e costumes absolutamente nacionais ganharam importância. Nessa época, a música começou a ocupar um lugar tão relevante quanto o texto. Os “revisteiros” mais famosos desse período foram Carlos Bettencourt e Luís Peixoto. Em meados dos anos 40, tem início a fase da féerie (confusão alegre), quando o Teatro de Revista perde seu teor de crítica social e ganha um ar inspirado nas produções da Broadway, em que imperavam o clima sensual e os números de dança. Essa fase foi chamada de music hall e seu maior nome foi Walter Pinto. Grandes músicos que marcaram a história da música brasileira, como Chiquinha Gonzaga, Pixinguinha, Ary Barroso e Lamartine Babo, contribuíram para o desenvolvimento do gênero. Foi nele também que surgiram expoentes do teatro e do cinema nacional, reverenciados até hoje pela representatividade para a cultura popular, como Grande Otelo e Oscarito. Isso sem falar na ascensão das grandes vedetes - que eram atrizes, cantoras e bailarinas -, estrelas de uma época envolta em plumas e paetês, como Dercy Gonçalves, Renata Fronzi, Virgínia Lane, Aracy Côrtes e Mara Rúbia.
Segundo o jornalista Salvyano Cavalcanti de Paiva, que pesquisou o assunto durante anos para escrever o livro Viva o Rebolado (Nova Fronteira), foi uma conjunção de fatores que acabou levando ao extermínio desse tipo de entretenimento, tão popular por quase um século. “Entre as causas apontadas por diferentes estudiosos estão, com mais freqüência, as de ordem ética, as financeiras, as políticas. Inegável é que as mudanças sociais, principalmente as ocorridas nas grandes capitais cosmopolitas, acarretando a liberação e a permissividade nos logradouros públicos, os avanços da moda de vestir ou desnudar-se da mulher e o comportamento desinibido diante dos velhos padrões constituíram componentes valiosos no ato de tornar a revista obsoleta”, explica ele na obra. A chegada da televisão freqüentemente é apontada como uma das razões que levaram o gênero à derrocada. Paiva, no entanto, não concorda. “Acusa-se a concorrência violenta, avassaladora da televisão como paradigma da derrota do teatro musicado; mas nos Estados Unidos o nível dos musicais transferidos para a TV é bem mais requintado, e nem por isso deixaram de representar revistas e burletas [rápida comédia, originária do teatro italiano do século 16, que geralmente é musicada] em Nova York”, pondera o jornalista. Embora vários fatores sejam apontados como causadores do desfecho, quando se fala de uma das mais importantes manifestações culturais que o Brasil já teve a nostalgia invade a cena. “Sempre haverá gente no mundo para se deslumbrar com as plumas, para ver o tamanho do brinco da vedete e admirar seu umbigo de fora”, disse a ex-vedete Mara Rúbia, uma das maiores de seu tempo.
O gênero e sua identidade - O Teatro de Revista era marcado por elementos recorrentes na cena. Veja o que não podia faltar:
Coplas - Eram números musicais cômicos realizados em dupla
Nu artístico - Tratava-se, na verdade, da grande sensualidade de algumas cenas, devido às pernas descobertas das vedetes
Compère (compadre) - Era quem conduzia a narrativa e unia os números musicais
Tipificação - Por influência da commedia dell’arte, sempre havia personagens fixos e caricaturados nas histórias, como o malandro, a mulata, o caipira e o português
O espetáculo não pode parar - É possível perceber referências à estética do Teatro de Revista na produção cultural brasileira da segunda metade do século 20 até os dias de hoje.
Teatro - Grandes espetáculos musicais, no estilo music hall, repletos de dança e sensualidade são derivados do Teatro de Revista em sua última fase, quando as vedetes imprimiam sensualidade ao espetáculo. São inspirados nessa fase musicais como Chicago e Não Fuja da Raia, protagonizado pela atriz Cláudia Raia nos anos 90.
Cinema - O cinema brasileiro dos anos 40 absorveu características do gênero, como a tipificação, os quadros musicais e a sátira política. Foi para onde migraram artistas de destaque, como Grande Otelo e Oscarito, que viriam a ser os astros das chanchadas produzidas pelos estúdios Cinédia e Atlântida.
Carnaval - Os desfiles de escolas de samba no Carnaval têm em comum com a revista o caráter grandioso, a sensualidade, a estrutura narrativa em forma de quadros (as alas) e as alegorias - personificação lúdica de entidades fantasiosas.
Televisão - A partir dos anos 70, os artistas do Teatro de Revista e das chanchadas passaram a atuar em programas humorísticos na televisão que mantinham a estrutura cômica dos quadros e os tipos caricatos. Ainda durante muito tempo foi possível ver Grande Otelo, Zezé Macedo e Walter D’Ávila em programas como Escolinha do Professor Raimundo e Zorra Total, da Rede Globo, e A Praça É Nossa, do SBT. Além dos humorísticos, as telenovelas também beberam nessa fonte. É o caso, por exemplo, de Sassaricando, exibida em 1987 pela TV Globo, escrita por Silvio de Abreu e dirigida por Miguel Falabella, Cecil Thiré e Lucas Bueno. A música de abertura, Sassaricando, composta por Candeias e Jota Júnior, fez enorme sucesso como parte da trilha da peça Eu Quero Sassaricar, de Walter Pinto.
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