quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Casamento inesquecível

“Ele me abraçou, me acolheu, me deu força”

Estrela da montagem de 'Vestido de Noiva' de 1965, Yoná Magalhães lembra do apoio que recebeu de Nelson Rodrigues na coxia após incidente na estreia

Por André Gomes


(Yoná Magalhães como Alaíde em montagem de 1965 da peça Vestido de Noiva. Foto Carlos. Cedoc/Funarte)

Yoná Magalhães comenta sua participação na peça Vestido de Noiva. Uma das mais incensadas peças do teatro brasileiro, Vestido de Noiva ganhou montagens variadas desde sua estreia, no dia 28 de dezembro de 1943. Yoná Magalhães estrelou uma delas: em maio de 1965, a atriz subia ao palco do Teatro Municipal do Rio de Janeiro na pele de Alaíde, protagonista da célebre peça de Nelson Rodrigues. A expectativa era de uma noite de glória diante do teatro lotado, mas um incidente com o vestido da personagem fez com que a atriz vivesse segundos aflitivos, lembrados com riqueza de detalhes até hoje, passados 45 anos.

“Meu véu ficou preso e pisei nele. Foi um tombo para ninguém botar defeito”, recorda Yoná, em entrevista especialmente concedida ao projeto Brasil Memória das Artes. Até aquele dia, a atriz ainda não havia conhecido o dramaturgo pessoalmente, mas o encontro se deu de forma inesquecível. Terminada a peça, Nelson Rodrigues estava no camarim para consolá-la. Depois da queda, Yoná conta que tratou de se levantar rapidamente, “como uma bolinha de quicar”, e no camarim, já parcialmente refeita do susto, não esperava encontrar apoio justamente no ombro do autor do texto. “Ele me abraçou, me apoiou, me acolheu, me deu força. Era tudo o que eu precisava. Esse era o Nelson, esse ser maravilhoso”, conta a atriz, que tem boas lembranças da montagem dirigida pelo ator Sérgio Cardoso.

Para a encenação, o ator e diretor inovou ao utilizar no cenário rampas, iluminadas de baixo para cima, pelas quais os atores circulavam. O recurso não foi muito bem recebido à época, mas garantia impacto visual, como comprovam fotos registradas pelo estúdio Foto Carlos e disponíveis no Centro de Documentação (Cedoc) da Funarte.

Por dentro da história de ‘Vestido de Noiva’

A montagem do espetáculo de 1943 marca o nascimento do teatro moderno no Brasil, graças à encenação realizada em três planos distintos: realidade, memória e alucinação. Alaíde, papel defendido por Yoná Magalhães em 1965, é atropelada por um automóvel. Enquanto é operada no hospital, relembra o conflito com a irmã, Lúcia, de quem tomara o namorado, Pedro (interpretado por John Herbert), e imagina seu encontro com Madame Clessi, cafetina assassinada pelo namorado de 17 anos. No plano da realidade, ela é operada e seu acidente é comentado por jornalistas; no da alucinação surge Madame Clessi, que Alaíde conheceu lendo seu diário; o da memória é a lembrança do triângulo amoroso com Lúcia e Pedro.

Em 1943, Alaíde foi interpretada pela atriz Maria Sampaio; em 1947, por Maria Della Costa; em 1976, pela atriz Camilla Amado, com Norma Benguel como Madame Clessy.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Memória Prêt-à-Porter

Manifesto Teatral

Em sua nona edição, a série de espetáculos Prêt-à-Porter mantém-se fiel às origens, com a supremacia do ator em lugar da pirotecnia cênica

O ator na essência, munido apenas de corpo, voz e um econômico cenário. Na cena, o homem é o foco de análise. Sem adornos, tecnologia ou jogos de luz com o objetivo de induzir a uma sensação de realidade, o resultado é verdadeiro e natural. Assim se revela a série teatral Prêt-à-Porter, coordenada há dez anos pelo diretor Antunes Filho. Com pouquíssimos elementos cenográficos, luzes estáticas para apenas dar visibilidade à cena, os espetáculos podem ser encenados em qualquer espaço e com baixíssimo custo. Dispensam o excesso de gestos e improvisações, os enfeites e ornamentos. Só conservam o essencial. O Prêt-à-Porter é composto sempre de três cenas curtas e independentes, apresentadas em seqüência.

Em cada uma delas há uma dupla de personagens que dialogam e trazem de forma metafórica reflexões sobre questões ligadas à existência do ser humano. Na série, a dramaturgia é elaborada pelos próprios intérpretes, que compõem o quadro, colocando em prática as teorias e técnicas desenvolvidas no Centro de Pesquisa Teatral (CPT), no Sesc Consolação, também sob o comando de Antunes Filho. "O Prêt-à-Porter não é um exercício", esclarece o diretor. "É claramente profissional, é inteligente, sofisticado, bem trabalhado e está crescendo cada vez mais." Antunes acredita ainda que o teatro tem de voltar às origens, ao homem. "É isso que é bonito e fundamental. É o homem", diz. "O Prêt-à-Porter é a coisa mais importante do CPT, é como eu gosto de ver a interpretação."

Evolução

O Prêt-à-Porter teve início em 1998, no CPT. Segundo o ator Emerson Danesi, que participou de diversas edições do espetáculo - inclusive a atual (veja boxe Teatro e poesia) -, a idéia surgiu de uma reflexão de Antunes acerca dos motivos pelos quais o teatro vinha recorrendo a tantos "efeitos pirotécnicos". "Grandes cenografias, grandes montagens, tecnologia invadindo o palco e demais coisas que abafavam a figura principal do teatro, que é o ser humano, portanto o ator", sentencia Danesi. Com esse teatro mais visceral, Antunes busca o que chama de uma comunhão do homem com suas origens, um teatro de arte. "Eu odeio o bonitinho. Espetáculos bonitinhos não têm nada a ver com arte. Não significa que não sejam bons espetáculos. Podem ser, mas não são arte. A arte está sempre recoberta por algum mistério.

A função dela é descobrir coisas que o homem está procurando: o mistério da vida", ressalta. O ensaísta e crítico Sebastião Milaré conta que as primeiras edições de Prêt-à-Porter foram marcadas por procedimentos didáticos: um apresentador dirigia-se à platéia e expunha a ideologia teatral geradora daquela performance; em seguida, a dupla de intérpretes colocava a gênese dos respectivos personagens. Porém, ao longo dos anos, ocorreram mudanças. "Foram alterações que buscavam o requinte estético", conta o o estudioso. "Essa tem sido a característica das últimas edições, que permitem certa ambientação da cena por meio da luz", por exemplo.

Milaré chama essas alterações de evolução. "A própria coisa gera suas necessidades, porque se trata de uma visão de mundo em perpétuo movimento", analisa. "Entretanto, não houve deturpação da essência, que é a demonstração prática do 'falso naturalismo', um naturalismo 'desenhado', princípio básico do método Antunes Filho." Emerson Danesi destaca também a mudança que houve na qualidade técnica dos atores. "Com o passar do tempo ganhamos mais habilidade para escrever, estamos mais profundos", detalha o ator. "Trazemos para a cena uma possibilidade mais ampla de criação e isso é reflexo da nossa evolução."

Atores completos

Participar de Prêt-à-Porter exige do ator uma preparação que envolve diversas técnicas. Assim, o dia-a-dia inclui aulas de filosofia e retórica, leitura de clássicos da dramaturgia mundial, exercícios corporais e o desenvolvimento de técnicas vocais e de respiração. "As aulas de filosofia são para despertar nos atores a noção de profundidade do ser humano", explica Antunes. "E as de retórica são para ensiná-los a falar. Os atores não sabiam falar, não conseguiam comunicar a sua verdade." Já a experiência de escrever os textos que irão encenar dá ao intérprete o controle do processo criativo. "Com isso ele se torna consciente de sua arte e compromissado com ela", diz. "No Prêt-à-Porter, o ator é dono de tudo, ele escreve, interpreta e dirige. Ele faz o seu sonho. O que mais um ator pode querer?"

Os exercícios corporais funcionam como um trabalho de desprogramação do corpo. "Você aprende a representar o natural e não a ser natural", afirma Antunes. "As pessoas aprendem a se afastar do corpo e das emoções, a usar as funções das personagens. Eu preciso de atores, de técnicas de ator. Sem isso eu não faço nada. Sem técnica você não consegue nem comunicar o que sente." Para Milaré, o Prêt-à-Porter continua sendo o "manifesto de uma escola teatral". A demonstração prática de uma técnica que possibilita ao ator afastar-se do personagem, para obter o controle da situação dramática. "Se ele consegue fingir naturalidade, desenhando o gesto, a respiração, a voz, a emoção do personagem, então consegue fazer o personagem em qualquer estilo, realista ou não realista, podendo até mesmo transformá-lo em um traço abstrato", explica o crítico, que define o método de Antunes como um modo pós-moderno de interpretar as expectativas do homem contemporâneo. "O método possibilita ao ator conduzir o trabalho em absoluto racionalismo, até chegar ao irracional, onde imaginação e realidade se confundem. Outros métodos podem ter as mesmas características ideológicas, mas a técnica Antunes Filho é única", conclui o crítico. •

terça-feira, 21 de setembro de 2010

CPT abre inscrições para o curso Introdução ao método do ator

SESC Consolação – Inscrições gratuitas de 20 a 24 de Setembro das 14h00 às 21h

O CPT (Centro de Pesquisa Teatral) do SESC Consolação abre inscrições para o curso de Introdução ao Método de Ator – CPTzinho, coordenado por Antunes Filho.

Realizado anualmente, o curso fundamenta-se no método de interpretação desenvolvido pelo diretor Antunes Filho e tem duração de quatro meses. Os alunos selecionados terão aulas de corpo e voz, interpretação, retórica e exibição de filmes.


Processo de Seleção e Cronograma:

20 a 24 de setembro – Inscrições gratuitas das 14h às 21h. Imprescindível trazer currículo resumido e foto 3x4, não fazemos inscrições sem apresentação destes.(Esta etapa do processo pode ser realizada por terceiros contanto que a foto e o currículo do inscrito seja entregue).

Os resultados desta etapa serão divulgados no dia 01 de outubro, em uma lista fixada no mural no Hall da área de Convivência no térreo da unidade / SESC Consolação ou pelo site www.sescsp.org.br, a partir das 14h.

04 a 08 de outubro, de segunda a sexta-feira, das 8h às 12h: entrevistas.

Dia 11 de outubro, segunda-feira, divulgação dos aprovados nas entrevistas, em uma lista fixada no mural no Hall da área de Convivência no térreo da unidade / SESC Consolação ou pelo site www.sescsp.org.br, a partir das 14h

Dia 15 de outubro, Sexta-feira, às 20h, reunião para formação de duplas e orientações para o teste prático, no Espaço CPT/SESC..

De 25 a 30 de outubro – Segundo a Sábado. Testes Práticos

Os resultados finais serão divulgados, no dia 01 de novembro, segunda-feira em uma lista fixada no mural no Hall da área de Convivência no térreo da unidade / SESC Consolação ou pelo certe www.sescsp.org.br, a partir das 14h

Aula Inaugural - Dia 05/11/2010, com Sebastião Milaré

Número de Vagas - 20

Duração do curso - De 05 de novembro de 2010 a 04 de março de 2011

Dias das aulas: De Segunda a Quinta, das 19h às 21h45.

Preço Total - (referente aos quatro meses) – R$ 90,00 Público e R$ 45,00 (trabalhadores no comércio e serviços matriculados)

ATENÇÃO:

1-Não fornecemos os resultados por telefone.

2-Idade mínima 16 anos completos

3-Não é necessário experiência anterior.

Cursos da SP Escola de Teatro


A SP Escola de Teatro abre Processo Seletivo/2011 para os cursos: Sonoplastia, Humor, Iluminação, Direção, Atuação, etc. Os cursos são gratuitos e tem duração de 12 meses.

sábado, 18 de setembro de 2010

Assista "O monge e o Executivo" com desconto

Que tal mergulhar em uma história sobre desafios, relações interpessoais e liderança, baseada em um best seller? Aproveite a oferta que o Peixe Urbano fisgou na Terra da Garoa, cidade que vive em constante efervescência cultural: 60% de desconto para assistir ao Espetáculo O Monge e o Executivo, no Setor Plateia, no Espaço Cultural Juca Chaves (de R$60 por R$24).

O espetáculo - em cartaz a dois anos - é uma adaptação do livro de James Hunter, um dos maiores best sellers da atualidade, com mais de 3 milhões de cópias vendidas no Brasil. O Monge e o Executivo é um excelente programa para o Cardume que busca se relacionar melhor no trabalho, em casa e com os amigos. As ideias e discussões apresentadas pelos personagens durante a peça são um verdadeiro convite à reflexão.

O Monge e o Executivo é uma narrativa sobre crescimento pessoal, e conta a história de John, típico executivo preocupado apenas com o trabalho, que acaba esquecendo-se dos relacionamentos humanos. Um dia, sua esposa, Rachel, pede para que ele passe uma semana no mosteiro João da Cruz, onde ele conhece Leonard Hoffman, um famoso empresário que abandonou sua brilhante carreira para se tornar monge. Hoffman o ensina princípios fundamentais dos verdadeiros líderes.

No elenco, jovens e experientes talentos como Milthon Cury, Adriano Paixão, Adriano Costello, Fabricio Bini, Eliete Sarrea, Cassia Bressan, Thiago Cordeiro e Maria Gal.

Então, o que está esperando? Espalhe a notícia pelo oceano e mergulhe nessa aula de liderança! O Monge e o Executivo está em cartaz aos sábados, às 21h, no Espaço Cultural Juca Chaves.

*Até Dezembro de 2010

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

O Teatro de Sotigui Kouyaté


SEGREDOS DA ÁFRICA

O ator e diretor de teatro africano, nascido em Mali, Sotigui Kouyaté conta algumas histórias de seu povo e fala das tradições de seu continente.

O ator e diretor teatral Sotigui Kouyaté tem no currículo experiência de sobra para assegurar a empatia do público e elogios da crítica ocidental. Exemplos disso não faltam, como as diversas peças do dramaturgo inglês Peter Brook de que participou - contato que extrapolou os palcos para ganhar a esfera da amizade. Apesar de ter muitas histórias de oportunidades profissionais para contar, não parece ser esse lado da própria trajetória que mais inspira Kouyaté a falar. Convidado do Sesc Consolação para uma palestra e workshop sobre teatro, preferiu prender a atenção dos presentes com histórias e relatos dos costumes da "pequena parte da África" da qual faz parte, como costuma dizer. Nascido em Bamako, no Mali, é de origem guineana e descendente direto do povo que pertencia ao Império Mandengue - dinastia que, com o Império de Gana, dividia a África em um desenho completamente ignorado pelos europeus durante a colonização. Talvez justamente pelo fato de que boa parte do mundo ainda desconheça o continente africano, Kouyaté aproveitou a ocasião para falar de seu povo, do que lhe é sagrado até hoje - e isso inclui os estrangeiros, "ricos porque trazem aquilo que não conhecemos", afirma -, contar sobre a relação que tem com os mistérios e os "milagres" da vida e para agradecer a oportunidade de mais um encontro, algo que, segundo ele, está no âmago da civilização africana. A seguir, trechos.

MEMÓRIA COLETIVA

A África é imensa, grande e profunda. Muito vasta. Logo, querer falar pela África seria uma grande pretensão. Por isso, escolhi falar sobre a pequena parte da África à qual pertenço, a África do oeste. Na porção oriental do continente, antes da colonização, houve grandes impérios. No século 11, houve o Império de Gana e, no século 13, o Império Mali (Mandengue, na verdade, já que Mali é um nome ocidental). E eu faço parte do que era o Império Mandengue, que abrigava o que hoje é o Senegal, a Gâmbia, a Guiné-Bissau, a Libéria, a Mauritânia, a Guiné, o Mali, Burkina Fasso, o norte da Costa do Marfim e o leste do Níger. Meu sobrenome, Kouyaté, tem origem nesse império e está ligado a sua história. Ele quer dizer "há um segredo entre você e mim". Sou o que chamamos griot. Os griots são como a memória do continente africano - dessa parte da África da qual falei. São a biblioteca, os guardiões da tradição e da cultura africana, encarregados de organizar todas as cerimônias. A função mais importante de um griot é a de mediador entre o povo, os reis e as famílias - e isso ainda continua. A presença deles é indispensável para o equilíbrio da sociedade africana. A gente não se torna griot, nasce. É algo que se passa de pai para filho. E não somente os homens são griots, existem mulheres também, e elas são muito poderosas. Foi essa minha função de griot que me levou ao teatro. Porque um griot não representa somente as palavras, tem a ver com estar a serviço de todo mundo. Minha mulher diz que eu não sei dizer não. Mas um griot não pode dizer não a uma pessoa que lhe faz uma pergunta, a menos que não possa responder.

COISAS SAGRADAS

Há dois anos aconteceu uma coisa que me fez adorar São Paulo mais que tudo. Uma moça que está aqui na sala, a Juliana, foi a primeira guia que o Instituto Francês me confiou. Como sou um pouco curioso, fiquei perguntando o nome das ruas e queria saber o significado. Ela me disse que algumas ruas tinham nomes de árvores, e eu fiquei completamente emocionado. Porque sei que, em alguns países civilizados, as ruas têm nomes de personalidades históricas e políticas. Então, venho a um país onde a natureza também tem direito a essa honra, e é essa natureza que conta para nós. O que nos diferencia desses, que também são seres, é que nós somos seres humanos porque recebemos uma parcela do poder criador divino, que é a palavra, a fala e o espírito.

Ainda temos muita relação com a natureza em nosso país. Os crocodilos, por exemplo, são sagrados para nós; os meus filhos, que vieram ao Brasil comigo, encontraram alguns desses animais e até sentaram em cima de alguns deles sem ser mordidos - tiraram fotos, filmaram etc. É tudo uma questão de sensibilidade, de como o homem pode ter uma relação de cordialidade com animais que são considerados ferozes. Em regiões diametralmente opostas de Burkina Fasso, quando um crocodilo morre, é enterrado. É como se a alma de uma pessoa da aldeia tivesse morrido também. Eles são muito protegidos. Mas não há somente os crocodilos sagrados, há também as cobras e os peixes sagrados.

O estrangeiro também é sagrado para nós. Claro, não como há 50 anos, mas as regras continuam sagradas. Um estrangeiro que chega, certamente, encontrará o que comer e onde dormir. E também há uma grande estátua que dá as boas-vindas aos estrangeiros. Chamamos os estrangeiros de "as pessoas ricas". Não materialmente - pois isso não é uma riqueza -, mas são ricas porque trazem aquilo que não conhecemos, o que ignoramos. Antigamente, quando o estrangeiro chegava, era alojado por três dias gratuitamente. Também não pagava nada para se alimentar. Mas tinha uma obrigação: durante as três noites ele ficava presente com a família, para falar de suas experiências, de onde vinha, o que viu no caminho e o que acontecia em seu país. Depois de três dias, não tínhamos mais obrigações. Ele também não. Mas era raro o mandarmos embora. E há uma dupla vantagem nisso: por um lado, a gente se forma e se conhece, por outro, é uma maneira de eles viajarem com poucos recursos. Não podemos dizer que um povo acolhedor não seja civilizado. O sábio não é aquele que pensa que sabe, mas é aquele que sabe que cada dia tem algo a aprender com outra pessoa. Por isso, também estou aqui como aprendiz, para me enriquecer com suas experiências.

PARA SITUAÇÕES DIFÍCEIS

Aconteceram muitos mistérios na minha vida. O Peter Brook fala em um documentário que tenho a capacidade de viver em dois mundos diferentes: no mundo visível e no invisível. É difícil fazer compreenderem isso. Tudo é cultural. Milagres existem, mas só acontecem para os que acreditam. E são relativos também, porque é preciso saber enxergá-los e compreendê-los. Vou contar uma história sobre isso, o tipo da coisa que, se você contar para uma pessoa normal, ela vai dizer que sou louco, mas enfim... Depois de uma turnê que passou pela Europa e ainda por outros países, estávamos na Austrália, representando ao ar livre, com mais de 300 acessórios - tapetes, toalhas, velas, bandeiras - e o local era uma pedreira. Na época, estavam realizando por lá um concurso de veleiros. No primeiro dia de ensaio o vento levou tudo embora. Por isso, não era possível fazer o espetáculo. Então, o Brook veio até mim e disse: "Caro Sotigui, estamos em uma situação difícil". Então, eu disse que não poderíamos fazer nada contra a natureza, que só poderíamos rezar. Daí ele pegou as minhas duas mãos e disse para eu rezar. Nesse nosso grupo havia um indonésio. Como a Austrália e Bali [capital da Indonésia] não ficam muito distantes, os pais dele haviam ido visitá-lo. Ele me apresentou aos pais, e a mãe dele era uma sacerdotisa em Bali. Então, eu disse a esse colega que naquela noite eu iria rezar por nossa situação. Por isso, falei para ele pedir à mãe se ligar a mim mentalmente. No dia seguinte, voltamos à pedreira e não tinha mais vento. O que deve ter sido ruim para o campeonato de veleiros.

Fonte: http://www.sescsp.org.br (revista nº117/ano 2006)