SEGREDOS DA ÁFRICA
O ator e diretor de teatro africano, nascido em Mali, Sotigui Kouyaté conta algumas histórias de seu povo e fala das tradições de seu continente.
O ator e diretor teatral Sotigui Kouyaté tem no currículo experiência de sobra para assegurar a empatia do público e elogios da crítica ocidental. Exemplos disso não faltam, como as diversas peças do dramaturgo inglês Peter Brook de que participou - contato que extrapolou os palcos para ganhar a esfera da amizade. Apesar de ter muitas histórias de oportunidades profissionais para contar, não parece ser esse lado da própria trajetória que mais inspira Kouyaté a falar. Convidado do Sesc Consolação para uma palestra e workshop sobre teatro, preferiu prender a atenção dos presentes com histórias e relatos dos costumes da "pequena parte da África" da qual faz parte, como costuma dizer. Nascido em Bamako, no Mali, é de origem guineana e descendente direto do povo que pertencia ao Império Mandengue - dinastia que, com o Império de Gana, dividia a África em um desenho completamente ignorado pelos europeus durante a colonização. Talvez justamente pelo fato de que boa parte do mundo ainda desconheça o continente africano, Kouyaté aproveitou a ocasião para falar de seu povo, do que lhe é sagrado até hoje - e isso inclui os estrangeiros, "ricos porque trazem aquilo que não conhecemos", afirma -, contar sobre a relação que tem com os mistérios e os "milagres" da vida e para agradecer a oportunidade de mais um encontro, algo que, segundo ele, está no âmago da civilização africana. A seguir, trechos.
MEMÓRIA COLETIVA
A África é imensa, grande e profunda. Muito vasta. Logo, querer falar pela África seria uma grande pretensão. Por isso, escolhi falar sobre a pequena parte da África à qual pertenço, a África do oeste. Na porção oriental do continente, antes da colonização, houve grandes impérios. No século 11, houve o Império de Gana e, no século 13, o Império Mali (Mandengue, na verdade, já que Mali é um nome ocidental). E eu faço parte do que era o Império Mandengue, que abrigava o que hoje é o Senegal, a Gâmbia, a Guiné-Bissau, a Libéria, a Mauritânia, a Guiné, o Mali, Burkina Fasso, o norte da Costa do Marfim e o leste do Níger. Meu sobrenome, Kouyaté, tem origem nesse império e está ligado a sua história. Ele quer dizer "há um segredo entre você e mim". Sou o que chamamos griot. Os griots são como a memória do continente africano - dessa parte da África da qual falei. São a biblioteca, os guardiões da tradição e da cultura africana, encarregados de organizar todas as cerimônias. A função mais importante de um griot é a de mediador entre o povo, os reis e as famílias - e isso ainda continua. A presença deles é indispensável para o equilíbrio da sociedade africana. A gente não se torna griot, nasce. É algo que se passa de pai para filho. E não somente os homens são griots, existem mulheres também, e elas são muito poderosas. Foi essa minha função de griot que me levou ao teatro. Porque um griot não representa somente as palavras, tem a ver com estar a serviço de todo mundo. Minha mulher diz que eu não sei dizer não. Mas um griot não pode dizer não a uma pessoa que lhe faz uma pergunta, a menos que não possa responder.
COISAS SAGRADAS
Há dois anos aconteceu uma coisa que me fez adorar São Paulo mais que tudo. Uma moça que está aqui na sala, a Juliana, foi a primeira guia que o Instituto Francês me confiou. Como sou um pouco curioso, fiquei perguntando o nome das ruas e queria saber o significado. Ela me disse que algumas ruas tinham nomes de árvores, e eu fiquei completamente emocionado. Porque sei que, em alguns países civilizados, as ruas têm nomes de personalidades históricas e políticas. Então, venho a um país onde a natureza também tem direito a essa honra, e é essa natureza que conta para nós. O que nos diferencia desses, que também são seres, é que nós somos seres humanos porque recebemos uma parcela do poder criador divino, que é a palavra, a fala e o espírito.
Ainda temos muita relação com a natureza em nosso país. Os crocodilos, por exemplo, são sagrados para nós; os meus filhos, que vieram ao Brasil comigo, encontraram alguns desses animais e até sentaram em cima de alguns deles sem ser mordidos - tiraram fotos, filmaram etc. É tudo uma questão de sensibilidade, de como o homem pode ter uma relação de cordialidade com animais que são considerados ferozes. Em regiões diametralmente opostas de Burkina Fasso, quando um crocodilo morre, é enterrado. É como se a alma de uma pessoa da aldeia tivesse morrido também. Eles são muito protegidos. Mas não há somente os crocodilos sagrados, há também as cobras e os peixes sagrados.
O estrangeiro também é sagrado para nós. Claro, não como há 50 anos, mas as regras continuam sagradas. Um estrangeiro que chega, certamente, encontrará o que comer e onde dormir. E também há uma grande estátua que dá as boas-vindas aos estrangeiros. Chamamos os estrangeiros de "as pessoas ricas". Não materialmente - pois isso não é uma riqueza -, mas são ricas porque trazem aquilo que não conhecemos, o que ignoramos. Antigamente, quando o estrangeiro chegava, era alojado por três dias gratuitamente. Também não pagava nada para se alimentar. Mas tinha uma obrigação: durante as três noites ele ficava presente com a família, para falar de suas experiências, de onde vinha, o que viu no caminho e o que acontecia em seu país. Depois de três dias, não tínhamos mais obrigações. Ele também não. Mas era raro o mandarmos embora. E há uma dupla vantagem nisso: por um lado, a gente se forma e se conhece, por outro, é uma maneira de eles viajarem com poucos recursos. Não podemos dizer que um povo acolhedor não seja civilizado. O sábio não é aquele que pensa que sabe, mas é aquele que sabe que cada dia tem algo a aprender com outra pessoa. Por isso, também estou aqui como aprendiz, para me enriquecer com suas experiências.
PARA SITUAÇÕES DIFÍCEIS
Aconteceram muitos mistérios na minha vida. O Peter Brook fala em um documentário que tenho a capacidade de viver em dois mundos diferentes: no mundo visível e no invisível. É difícil fazer compreenderem isso. Tudo é cultural. Milagres existem, mas só acontecem para os que acreditam. E são relativos também, porque é preciso saber enxergá-los e compreendê-los. Vou contar uma história sobre isso, o tipo da coisa que, se você contar para uma pessoa normal, ela vai dizer que sou louco, mas enfim... Depois de uma turnê que passou pela Europa e ainda por outros países, estávamos na Austrália, representando ao ar livre, com mais de 300 acessórios - tapetes, toalhas, velas, bandeiras - e o local era uma pedreira. Na época, estavam realizando por lá um concurso de veleiros. No primeiro dia de ensaio o vento levou tudo embora. Por isso, não era possível fazer o espetáculo. Então, o Brook veio até mim e disse: "Caro Sotigui, estamos em uma situação difícil". Então, eu disse que não poderíamos fazer nada contra a natureza, que só poderíamos rezar. Daí ele pegou as minhas duas mãos e disse para eu rezar. Nesse nosso grupo havia um indonésio. Como a Austrália e Bali [capital da Indonésia] não ficam muito distantes, os pais dele haviam ido visitá-lo. Ele me apresentou aos pais, e a mãe dele era uma sacerdotisa em Bali. Então, eu disse a esse colega que naquela noite eu iria rezar por nossa situação. Por isso, falei para ele pedir à mãe se ligar a mim mentalmente. No dia seguinte, voltamos à pedreira e não tinha mais vento. O que deve ter sido ruim para o campeonato de veleiros.
Fonte: http://www.sescsp.org.br (revista nº117/ano 2006)
Fonte: http://www.sescsp.org.br (revista nº117/ano 2006)
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