Em 17 de julho de 2007, em passagem pelo brasil, Anatoli Vassiliev ministrou no Sesc Consolação palestra sobre o seu trabalho no teatro russo.
O diretor russo Anatoli Vassiliev fala de seu trabalho como pedagogo nas artes cênicas
Um dos principais encenadores da Rússia nos últimos 20 anos, o diretor de teatro Anatoli Vassiliev alcançou projeção internacional por meio de seu trabalho como pedagogo e pesquisador da arte cênica. Em meados da década de 80, Vassiliev foi o responsável pela criação da Escola de Arte Dramática em Moscou, um espaço laboratorial de renovação e pesquisa da cena e da pedagogia teatral. Embora tenha herdado toda a tradição do teatro de seu país, sua trajetória artística demonstra a manutenção e, ao mesmo tempo, o constante questionamento desse legado."Comecei a me afastar da tradição russa e passei a trabalhar em sala branca, onde não existe escuridão", conta em sua palestra realizada no Teatro Sesc Anchieta, em 17 de julho. "Desde então, sempre vejo o público, e isso é muito bom." Na conversa, que tem trechos publicados a seguir, Vassiliev falou sobre metodologia no ensino da arte dramática e comentou o processo de montagem do espetáculo Médée-Matériau - a partir da tragédia grega de Eurípedes, da adaptação do mito feita pelo alemão Heiner Müller e de material de outros autores - após exibição de um vídeo da peça, que fez parte da programação do Festival Internacional de Teatro de Rio Preto.
Escola russa
Minha paixão pela pedagogia pode ser explicada pelo fato de que minha mãe era professora. Trabalho há 26 anos como professor. Quando estava estudando direção na escola russa, meus mestres me educaram para ser professor. A profissão de diretor é composta, em primeiro lugar, de saber analisar o texto e ser um espelho para o ator. Em segundo, de ser o professor do ator. E, por último, de organizar toda a ação. Esse é um postulado da escola russa de direção. Nessa escola não se fala somente em ensaiar o papel, e sim em "educá-lo". Isso significa ter uma relação semelhante à que se tem com uma criança. Primeiro a criança precisa ser concebida, depois educada até se tornar um adulto. Ou seja, é só aí que o papel pode ser lançado em cena. No período de ensaios, a parte pedagógica ocupa mais da metade do tempo. Assim é a tradição russa. Gosto muito da parte pedagógica do trabalho.
Dentro e fora de cena
Sempre digo que há duas etapas fundamentais no trabalho: antes do palco e durante o palco. Antes do palco, nunca trabalho com a mise-en-scène [interpretação que será dada à cena no palco]. No palco, trabalho somente com ela. São duas etapas muito claras e opostas: a primeira é o trabalho interno e a segunda, o externo. O trabalho interno diz respeito àquilo que chamamos de análise para a ação. Quer dizer, é nesse momento que se define cada movimento concreto que o ator deve fazer para cumprir a ação. Um ator em cena age segundo três formas de ação: verbal, física e psíquica. Ele fala, move-se e sente. Já as situações são formadas pelas circunstâncias, preparadas antes de o ator começar a agir, e estão todas no início da ação. Tudo isso se constrói para o personagem, e o ator tem de fazer um trabalho interno. É como se ele se identificasse com as circunstâncias e as situações do personagem. Dessa forma, o ator provoca em si o desejo de fazer alguma coisa. No final das contas, esse desejo se transforma em sua ação. Essa forma de análise é a tradicional, típica daqueles textos dramáticos que estudam a vida do personagem no que diz respeito a sua psique. Então, a gente pega a peça, vê o que aconteceu no início e o que pode provocar a ação. Com esse jeito tradicional, estuda-se o estilo do comportamento psicológico. Nesse caso a ação está na psique.
Método
No ensino que proponho, sempre começo com os diálogos de Platão. Pois esses textos me permitem transmitir a teoria e a prática das estruturas lúdicas. Esse texto é ideal para isso. Gasto cerca de um ano com esse ensino. Acho que se deva começar daí. No entanto, essa estrutura não é a base para a consciência moderna. Por isso, no ano seguinte começo a educar detalhadamente a capacidade do ator de representar a estrutura psicológica. Ou seja, ocupo-me de Tchecov [Anton Tchecov (1860-1904), escritor e dramaturgo russo] ou de dramas semelhantes aos dele. Considero essa prática básica. Depois de os meus alunos terem assimilado essa escola fundamental, volto ao teatro lúdico. É assim que construo a metodologia da educação do ator. Há dois métodos de trabalho. Um é o que se chama método de estudos: baseia-se em improvisações no período de ensaio. Nele, as propostas dos atores são muito importantes, e o diretor sempre os provoca para isso. Nesse caso, a mise-en-scène nasce nos ensaios e nem sempre são propostas do diretor. Ao contrário, são propostas dos atores. Quer dizer, é um método livre. Já, o método que peguei para fazer Medéia, de Heiner Müller, é severo e preciso. Não existe nenhuma improvisação.
Medéia
Tanto a ação quanto a mise-en-scène de Medéia estão na palavra. Sendo assim, a forma como foi feito esse espetáculo é o caminho mais radical nas estruturas lúdicas. Porque aqui a ação na palavra é como a ação absoluta, máxima e integral. Na realidade, durante o período de ensino é impossível que eu aborde textos assim, pois três anos não seriam suficientes. É preciso tempo. Esse trabalho teve sua estréia em Moscou, em 2001, quando eu ainda utilizava o palco italiano. Dessa maneira, a platéia ficava às escuras. Mas comecei a me afastar da tradição russa e passei a trabalhar em sala branca, onde não existe escuridão. Desde então, sempre vejo o público, e isso é muito bom. A última vez que representamos Medéia foi na cidade de Delfos, na Grécia, há mais ou menos uma semana [na primeira quinzena de julho]. Apresentamo-nos em um antigo palco grego, e havia 600 pessoas sentadas no anfiteatro. Mas a técnica utilizada pela atriz permite que ela represente tanto para 60 quanto para 600 pessoas. Agora compreendo que esse foi um trabalho fundamental na minha vida. No fim das contas, foi como uma síntese de todas as idéias e da prática. Com esse trabalho, simplesmente tentei completar o caminho da prática e da teoria que eu estava procurando. Mas não procurei Heiner Müller de propósito. Medéia acabou sendo praticamente por acaso e, ao mesmo tempo, como era para ser. A personagem é subtraída de tudo que tinha, não fica com nada. Entre Jasão e Medéia só há os filhos. Na realidade não é assassinato dos seus filhos, é um sacrifício dela. É uma coisa que tem um conteúdo ritual completamente diferente. Quando descobri que Medéia sacrifica os filhos aos deuses, vi que eu podia fazer isso. Para mim, teria sido completamente impossível assassinar as crianças.
Fonte: sesc.org.br e usp.br
Pesquisa: Adriano Costello
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